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sábado, maio 29, 2004

Existência 

3650. Eram 3650 degraus. Cada um de cor diferente, como um gigantesco Pantone em evolução permanente, iniciado no Avocato Green, com fim marcado para o Twilight Blue. Mescla, caleidoscópio colorido, com todos os matizes bem demarcados, mas, simultaneamente, intimamente imbricados, como se todos fossem, em última análise, parte integrante da mesma entidade. E subi-os, todos. Como se fossem apenas mais uma etapa para um objectivo bem definido, ainda que nem eu próprio tivesse consciência de qual seria. E um som profundo, que vinha do solo abaixo de mim, 30 mil metros abaixo da escadaria suspensa.

À volta, as cores brilhavam, como se o próprio cenário fosse um círculo hipnótico infindável, aurora boreal de tons insondáveis. Contornos difusos, cuja própria existência pus em causa. E, no topo, imponente, o portal. Granito românico, de matizes vermelhos. Alguém tornara os feldspatos em pontos de cor em mutação constante, movimentos perpétuos de cor e luz. O som, perdido nas brumas coloridas, aumentava de intensidade. Distingo agora vozes, tambores, som graves que me obrigam a mexer, como se tomado por uma energia que me atravessa e me faz pertencer a um nível diferente. Algo de iniciático, ritual, secreto. As vozes elevam-se e distingo melhor as palavras, como um mantra pós-moderno, modernos primitivos à solta: “Oh landou, nieva, mesthai, mesthai, muora, esse-esse, namesse, naguesse, namesse, dassucodavilei, amda-eri-samdeh...”

Ao passar a porta, um som envolve-me, como se uma vibração constante me acompanhasse daí em diante, atestado do meu feito, da minha subida infindável. Do outro lado, linhas serpenteantes, riscos vermelho-vivo que correm ao longo de toda a nave central, ondulantes, encaminhando-me para o altar de pórfiro. Ao chegar junto a ele, o cântico elevava-se, numa espiral que parecia não ter fim previsível, como se todas as escalas tivessem há muito sido desfeitas por um qualquer compositor anarquista, decidido a romper de vez com limitações físicas.

Ao tocar a pedra fria do altar, as linhas começam a serpentear, não da forma linear como até então, mas com um objectivo evidentemente definido; algo de tridimensional, volumétrico, quase arrisco a pensar que seja algo com textura. Ao mesmo tempo, a sua cor entra em lenta mutação, pulsante, até estabilizar num azul eléctrico, electrizante. Começo lentamente a discernir uma figura, formada pelas linhas, como néons moldados a um corpo. Percebo finalmente quem és.

Ao tocar-te, deixo imediatamente de ouvir o mantra infinitamente escutado até então. Apenas um som aproximado de vento forte nos rodeia, como buraco negro subitamente destapado, que, simultaneamente, começa a sugar toda a cor à nossa volta. Mais e mais rápido, o círculo de cores é aspirado, engolido pelo vórtice aberto no altar. Vejo-me, instantaneamente, numa sala branca, onde apenas o vermelho do altar e o azul dos néons que és tu brilham, tornam-se quase chocantes neste agora alvo ambiente. Olho para as minhas mãos, dou-me conta, repentinamente, que me tornei translúcido, bolha em forma de corpo. Cores irisadas, qual bola de sabão, desloco-me na direcção que me indicas, reflectindo as tuas cores brilhantes na minha translucidez plástica.

É ao me dares a mão que sinto o calor que emana do teu corpo e a vibração que atravessa este meu corpo agora etéreo. Aproximamo-nos do altar e viro-me na tua direcção. Lentamente, abraças-me. E o branco da sala vibra, como se animado de uma outra qualquer energia, nova, profunda, poderosa. Uma estranha sensação de paz inunda-me, enquanto me apercebo aos poucos que a cor que até há instantes reflectia este meu novo corpo está, agora, dentro dele. Abro os olhos e não te vejo. Ao olhar para baixo, compreendo que eu próprio já não existo. Nem tu. Até que uma voz dentro de mim me diz “Descansa. Agora, nós existimos.”.

E, ao acordar novamente na minha cama, sei que nunca mais serei o mesmo. Porque agora sei de onde vem o calor que emana de mim.

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